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A vida como ela é

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Férias são sempre assim: a gente usa o tempo de folga para colocar em dia o que deixou para trás por falta de tempo. Então, lá fui eu iniciar uma peregrinação a consultórios médicos, a fim de fazer um checklist da saúde. Nesta aventura, desembarquei em uma clínica de exames na região central de Juiz de Fora. Quando entrei, o impacto foi imediato. Havia uma brisa gelada de ar-condicionado que contrastava com o clima do lado de fora, um típico dia de “calor dos infernos”, expressão que a jornalista e colega de redação Júlia Pessôa sabe usar com muito mais propriedade do que eu. Além da fresca artificial, tudo lá era pensado para agradar o cliente. Cafezinho com biscoitos, uma luz indireta suave e amarela para fazer relaxar o mais ansioso dos mortais.

Meu olhar vasculhou o luxuoso lugar. Me lembrei de Nelson Rodrigues, pois também vejo o mundo pelo buraco da fechadura. Espio para aprender sobre o outro. E foi o que fiz. Sentei em uma poltrona daquelas que afundam e acolhem a gente, enquanto esperava para ser atendida, reparando no vaivém das pessoas. Nesse exercício de observação, vi um idoso que não trazia nenhum pedido médico nas mãos. O homem entrou, passou direto pelo atendimento, cumprimentou amistosamente os estranhos e, depois disso, ajeitou-se no sofá. De repente, ele abraçou sua barriga e tirou uma soneca invejável. Minutos depois, roncava a ponto de chamar atenção. Mais tarde, fui saber que o dorminhoco é um frequentador assíduo da clínica. Todos os dias, ele chega no mesmo horário com a única intenção de dormir sob o ar refrigerado. Na certa, o coitado deve ter encontrado naquele lugar um silêncio misterioso em meio ao barulho que há por lá. O sono de qualidade dessas tardes parece fazer bem a ele. Acorda bem disposto e sai sem despedidas.

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Me diverti muito com a cena, até que outra roubou minha atenção. Um homem mais jovem do que o primeiro, com roupas sujas e sinais de doença mental entrou na clínica. Faminto, foi direto para a mesa de biscoitos. Meteu a mão no pote, debaixo do olhar de censura dos demais. Uma atendente cutucou a outra como se dissesse: “Olha lá, chegou o nosso problema”. Morador em situação de rua, o personagem tentou enganar sua fome e saiu, deixando para trás odor incômodo que abala todo cego social, afinal, como alguém daquela forma nos obriga a vê-lo e, pior, a sentir seu cheiro?

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Por causa deste indivíduo, considerado menos ser humano que os demais, descobri que a clínica de exames cogita acabar com o cafezinho. A explicação que ouvi é que, em função do intruso, a empresa é obrigada a jogar fora os biscoitos que restam no pote, já que o homem não tem modos suficientes para usar o pegador. Foi quando percebi que, mesmo sem tocar nos biscoitos que ele “sujou”, a maioria de nós já está contaminada pelo preconceito e pelo descaso. Como aquele ser que foge aos padrões sociais não é problema nosso, eliminar o território do lanchinho “grátis” é a forma mais fácil de garantir que pessoas “daquele tipo” fiquem longe da clínica, afinal perturbam o cenário idealizado para ser diferenciado.

Foi duro perceber, mais uma vez, que as portas, apesar de abertas, continuam sempre cerradas para os considerados indesejáveis. Se quisermos, realmente, construir uma sociedade onde caibam todos, vamos ter que enxergar a vida não como ela é, mas como deveria ser.

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