A campainha tocou na casa do repórter fotográfico da Tribuna, Roberto Fulgêncio. Da sua janela, ele avistou na calçada uma menina que aparentava ter uns 8 anos. De short vermelho e chinelo de dedo, apesar das baixas temperaturas do inverno, a criança fez um pedido diferente daqueles que o fotógrafo estava acostumado a ouvir. Não quis biscoitos, nem comida, apenas que ele comprasse por R$0,50 um número em seu caderno. Curioso diante da garota magricela e do misterioso destino que sua moeda teria, ele perguntou o significado de tudo aquilo.
_ É para que eu seja a princesa da escola, respondeu, com um sorriso, a pequena aluna da rede pública.
Aquela resposta desmontou Roberto. Pai de três machos cabeludos, o sonho da menina o comoveu. Ele, então, “comprou” quatro números entre os 20 que estavam disponíveis, e disse que torceria para que ela fosse a escolhida. Ao compartilhar a história com um conhecido, o fotógrafo ouviu que a menina não deveria estar preocupada com um concurso de beleza, “até porque não teria a mínima chance” e, sim, em ajudar a família pobre desde cedo, fazendo bicos.
No mês em que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completa 25 anos é assustador perceber o quanto ainda existe de incompreensão sobre o que a lei propõe para a infância e a adolescência brasileira. Presa à mentalidade segregadora do antigo Código de Menores, que considerava toda criança em situação de vulnerabilidade um problema social, a ideia de hierarquização da vida ainda predomina. Ao filho da pobreza deseja-se o trabalho precoce que compromete o desenvolvimento físico e emocional, perpetuando o ciclo de exclusão. Ao filho bem nascido garante-se vagas de estudo e uma existência de oportunidades. Para uns se oferece cidadania, para outros o fiel cumprimento de um destino de privações.
O ECA propõe que a roda gire ao reconhecer o direito de meninos e meninas de construírem novas histórias por meio da garantia de proteção integral e da prioridade absoluta na execução das políticas públicas. Propõe cuidado e não condescendência, ressocialização e não impunidade, além do combate sistemático contra os maus-tratos, a violência doméstica e a exploração sexual que afeta a população infantojuvenil. Propõe acesso à escola e ao lazer, dignidade na assistência a saúde. Imputar à lei o fracasso no seu cumprimento é como enxergar com olhos de catarata. Com a visão obstruída pelo preconceito, nós, adultos, temos dificuldade em perceber que a criança é o que oferecemos para ela.
“Todas as meninas deveriam ser princesas”, me disse Roberto. Deveriam sim.