“Sempre quis ser” é o nome de um projeto realizado por estudantes de Lisboa que revelou os sonhos de dez moradores em situação de rua em Portugal. Com um quadro nas mãos, os entrevistados escreveram com giz o que desejavam ter se tornado na vida, ideais muito diferentes ao daquela existência de privações. “Arquiteta”, rabiscou uma idosa na pequena lousa sem conseguir sorrir para a câmera que a fotografava em preto e branco. Um senhor com barba por fazer revelou sua aspiração: sempre quis ser engenheiro civil. Deitado na calçada fétida, outro respondeu que tinha como ideal ensinar, queria muito ser professor. Sentada sobre a lata de lixo, a moradora de rua afirmou que aspirava seguir a carreira médica. Deitado na porta de uma boutique de luxo, o homem surpreendeu com um sonho aparentemente simples: queria ser feliz.
Aqueles rostos desesperançosos me tocaram profundamente. Entre os comentários postados abaixo das fotos de cada personagem do projeto, um me chamou a atenção: “Não conseguiram, porque não se esforçaram o suficiente”, palpitou uma internauta. Aquela frase foi absurdamente cruel. Embora a vida seja feita de escolhas, é muito mais difícil para quem nunca saiu do chão se levantar sozinho. Ninguém escolhe ser miserável, comer sobras do outro, passar frio na rua. E o fato de estar em situação de rua não priva de humanidade os que estão temporariamente nesta condição, porque uma das coisas mais preciosas do ser humano é a capacidade de sonhar. Estar na rua não os anestesia. Pelo contrário, o fracasso parece doer mais. Ao sugerir, equivocadamente, que essas pessoas não têm direito de sonhar porque sequer são esforçadas, a internauta parece dizer que indivíduos em situação de rua também não deveriam existir.
Pensando sobre aqueles homens e mulheres que não conseguiram ser, me lembrei da minha própria história e me dei conta do quão privilegiada eu fui por fazer o que eu queria. Desde adolescente, eu sempre quis ser jornalista para, através desta profissão, transformar o cenário social da desigualdade. E ao contrário daqueles anônimos que se viram sem casa e sem apoio, recebi oportunidades. Tive uma família que me acolheu, garantiu vaga em boas escolas e me permitiu estudar em tempo integral, me oferecendo condições para ir atrás do que desejava. Fui, portanto, estimulada por meus pais. Mais do que isso: eu tinha um lar para onde podia voltar todos os dias e que me recebia com amor. Tudo isso fez muita diferença entre o sonho e a realidade.
Me formei em Comunicação Social na UFJF aos 22 anos. De lá, segui no Rio fazendo um curso de televisão. Com menos de um mês de aulas, porém, o professor me disse algo inesperado: “Você será tudo na vida, menos jornalista”. Aquela frase mexeu muito comigo. Fiquei baqueada. Com o tempo, percebi que eu não podia acreditar em quem não acreditava em mim. Mais do que nunca, eu seria a jornalista que sempre quis ser, nem que fosse para contrariar aquela profecia.
Quinze anos depois, ao receber em Washington o Prêmio Knight pelo conjunto do meu trabalho, fui questionada pelo repórter que me entrevistava: “O que você diria para o professor que te julgou incapaz de ser jornalista?” “O que eu diria?”, repeti, tentando achar uma resposta. “Obrigada”.