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O enterro da razão

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A nota técnica nº11/2019 do Ministério da Saúde sela o rompimento do Governo federal com a reforma psiquiátrica brasileira. O documento sobre a “Nova Saúde Mental” lança uma pá de cal nos mais de 40 anos de esforços dos trabalhadores de saúde mental para garantir um atendimento humanizado a pessoas acometidas por transtornos e que, durante décadas e décadas, foram segregadas em locais destinados não ao tratamento, mas à higienização social. O caminho para o retrocesso já havia sido aberto por Michel Temer, cujo governo aprovou o aumento de repasses públicos para leitos em hospitais psiquiátricos (questão tratada apenas como atualização das diárias), visando a manutenção da oferta, sua ampliação e a expansão de comunidades terapêuticas que, muitas vezes, recorrem à religião para tratar dependentes químicos. Agora, no entanto, o rompimento é escancarado. Não só abre as portas para a retomada da lógica manicomial, como aceita a internação de crianças e adolescentes em enfermarias psiquiátricas, condenando a infância e juventude a uma vida sem futuro.

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“Importante reforçar que o Ministério da Saúde não mais incentiva ou estimula o fechamento de leitos especializados, mas a sua qualificação, elevando os padrões assistenciais. (…) A diretriz adotada por essa Coordenação de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas é no sentido de qualificar os hospitais psiquiátricos remanescentes para que recebam novos pacientes e não que fechem as portas às demandas da população, piorando ainda mais a desassistência que vinha aumentando nessa área nos últimos anos”, diz parte do texto publicado pelo governo. Segundo o Ministério da Saúde, hoje o Brasil conta com 0,1 leito por mil habitantes, enquanto o preconizado pelo próprio órgão ministerial é 0,45 por mil habitantes.

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Na prática, o Ministério usa os nós que a rede substitutiva não conseguiu desatar para justificar a retomada do modelo anterior, ou seja, para caminhar na direção do profundo retrocesso, oferecendo vários tipos de custeio para hospitais que poderão ter de 160 leitos a mais de 400 leitos, dando aval para retomada dos grandes depósitos de gente. Que fique claro: não existem leitos humanizados em manicômios, vide toda a história revelada no Holocausto brasileiro, quando milhares de pessoas morreram de fome, frio e abandono nas barbas do Estado, com a conivência nossa de cada dia. Se o poder público não consegue ser eficaz para fiscalizar sequer estruturas a céu aberto, como a barragem de Brumadinho, Mariana, Miraí, como fiscalizar o que acontece dentro de quatro paredes, em meio às muralhas erguidas pelos hospitais que só fizeram trancafiar os privados de razão?

Basta relembrar o esforço do Programa Nacional de Avaliação dos Serviços Hospitalares para verificar as condições de funcionamento dos hospícios brasileiros e a patacoada que os donos de hospitais faziam para “maquiar” a realidade em épocas de visitas “surpresas”. Na ocasião das avaliações, os doidos eram vestidos, a despensa renovada, a pintura repaginada. No resto dos dias tudo era exatamente igual: privação, abuso de poder e o máximo que o mínimo poderia oferecer.

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Basta acessar as fichas dos pacientes para perceber que, ao invés de um local de tratamento temporário, os hospitais se tornaram locais de moradia, cronificando pessoas por décadas e décadas. Gente transformada em trapo humano, sem visitas e afeto. Para entender os efeitos da desumanização, basta conhecer a história de Cabo, o paciente que passou 20 dos 34 anos internados no antigo Colônia, em Barbacena, sendo considerado uma pessoa muda. Um dia, no entanto, ele soltou a voz, assustando o funcionário que olhava para o paciente veterano como se tivesse visto um fantasma. “Por que você não disse que falava?”, questionou o homem, quase ofendido. A resposta foi cortante: “Uai, nunca ninguém perguntou.”

O que pensam os antigos usuários dos hospitais sobre o financiamento do governo para compra de aparelhos de eletrochoque e a retomada da eletroconvulsoterapia? Indicada para deprimidos graves, a técnica, porém, foi amplamente utilizada não por finalidade terapêutica, mas como castigo e contenção do grupo. Volto a repetir o que já disse em colunas anteriores. Não existe manicômio bonzinho. A quem interessa retomar modelos claramente falidos? A quem interessa fazer silêncio sobre a aberração que é a nova diretriz para a saúde mental no Brasil? A quem interessa desconsiderar que o tratamento em liberdade é não só mais eficiente, como mais digno?

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Será que vamos continuar surdos ao sofrimento alheio, como fizeram com o Cabo, o paciente do Colônia, no passado recente? Eu não apenas ouvi os esquecidos. Eu os acompanhei dentro e fora dos hospitais por mais de uma década. E as pessoas que encontrei trancafiadas dentro de si mesmas nos manicômios reencontraram sua humanidade quando se viram livres das amarras causadas não pela doença, mas pela estrutura que se propunha a tratá-la. Na condição de usuários, os antigos pacientes ganharam o direito de votar, de ir e vir, de decidir a hora que as luzes seriam acesas ou apagadas nas residências terapêuticas onde passaram a viver. Reaprenderam a olhar para si mesmas, retomando o desejo de continuarem a existir.

Agora, no entanto, os “loucos” poderão voltar ao confinamento. Já os “sãos” continuarão livres para promover o enterro da razão.

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