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Sebo nas canelas

julia pessoa coluna 1
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Percebi a concretude deles lá pelos 11 anos, quando o marco temporal de não ficar mais suada pela escola depois das aulas de Educação Física anuncia uma despedida social da infância. A partir dessa idade, a etiqueta era levar a roupa da prática esportiva na mochila e trocar no vestiário com as colegas. A falta de sutiã – mesmo que não houvesse o que sustentar – denunciaria o pior crime que poderia ser cometido naquele momento da vida: ser criança.
Peitos, peitaria, seios, tetas, mamas, mamá, tetê, pomos, tetê, melões, úberes. Nunca lhes dei muita confiança, até porque nunca foram lá de se fazer notar muito. Nem pequenos, nem grandes demais. Nem lindos, nem feios. Nem empinados, nem caídos. Nem durinhos, nem murchos. Apenas suficientes. Apagados em sua saudável mediocridade por décadas a fio.
Não que passassem também, assim, totalmente despercebidos – por mim ou outrem. Mas algum tempo atrás, notei que um deles havia fugido daquela existência absolutamente mediana e sem ocorrências. Estava diferente. Não foi a primeira vez que eu arranquei a blusa diante de um homem torcendo para que o melhor acontecesse. Definitivamente não foi a última. Mas daquela vez não teve torcida que adiantasse. Diagnóstico: estava mesmo diferente o danado do peito, para sempre. Ele e eu. Câncer.
Assim fui exibi-lo, passá-lo de mão em mão; de robô a robô; de maca a maca; de agulha a agulha, de ponto a ponto. Narrei incontáveis vezes sua história: que nunca havia me surpreendido até então; que na família só parentes distantes viveram caso de rebeldia como o que eu enfrentava agora; que nunca havia sido alimento para pequenas bocas famintas.
No fim das contas, já sabíamos que nossa separação era certa. Ele, como o peito do Hino Nacional, desafiava minha própria morte. E eu temi, contrariando a segurança de quem “nem teme, quem te adora”. E desde então, sigo temente todos os dias, sentindo a arfada da finitude me aquecendo o cangote. Por isso mesmo, continuo apertando o passo, na tentativa de que ela não me alcance. Venho vencendo.
Hoje o seio que sequestrou toda atenção da minha vida não está mais comigo. Precisei, coitado, abandoná-lo. Foi expatriado, expulso, exilado, desmamado de si mesmo (a mamata acabou). Carrego um simulacro dele, feito tão à sua imagem e semelhança que é possível jurar que não nos desprendemos.
Com o clone, salto diariamente por obstáculos que o original deixou, mesmo sem querer, de herança. Radiação, comprimidos, repetições de séries de exercícios, cicatrizes, agulhas, cortes, e desvios de rota como inflamações e infecções oportunistas. Vez ou outra, paro pra tomar fôlego: fugir cansa, ainda mais da morte, que tem sebo nas canelas. Estou exausta.

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