Quando eu tinha uns 14 anos, estava na casa do meu pai, e conversávamos sobre qualquer coisa quando ele mandou, na lata:
– Minha filha, você gosta de meninas?
– O quê, pai?
– Se você prefere namorar meninas…
– Porque você tá me perguntando isso?
– Porque você não tem namorado, nunca falou de nenhum menino… Eu só queria que você soubesse que você pode e deve namorar quem quiser.
– Eu gosto de meninos, pai! Mas a coisa tá é feia pro meu lado, pego ninguém.
Respondi com a evasiva meio atravessada, meio fanfarrona, pau da vida por achar que meu pai tinha pensado que só porque eu não tinha um namorado, eu automaticamente era gay. Hoje, burra velha, vejo quanto de preconceito tinha nessa minha raivinha, tanto que chegou a me cegar para a grandeza do meu pai, de me aceitar como eu fosse, sem importar o que isso significasse. Grandeza porque, apesar de isso dever ser regra, é algo mais raro do que água em São Paulo e, infelizmente, gente como o meu velho é mais difícil de encontrar do que quem esteja pronto a atacar qualquer pessoa que lhe fuja às expectativas- frequentemente preconceituosas e normativas.
Li esses dias nessa sempre agridoce internet mais uma da coleção de pérolas da Regina Duarte, que vai interpretar uma lésbica na próxima novela de sei-lá-que-horário. Ela dizia, com a sabedoria de uma Helena rasa e superficial de Manoel Carlos, que “sair do armário” não ajuda a acabar com o preconceito contra a sexualidade. Nas palavras dela, ao fazer isso “(..) você leva como se fosse um carimbo para o resto da vida, e eu acho isso uma loucura: condenar uma opção (sic) da pessoa, daquela fase da vida dela.” Que carimbo, Regina? Que fase da vida? E se for, qual o problema? Em quê isso muda o direito inalienável que as pessoas têm de amarem quem quiserem ( com atração, desejo e sexo inerentes, porque é bom e tudo mundo gosta) e SIM, se manifestarem sobre essa sexualidade? Perdoe-me, “Malu Mulher”, mas refraseando Romário em sua máxima sobre Pelé, preciso dizer: Regina de boca aberta é rainha. Da sucata.
Outra perversidade cometida nas redes essa semana foi relativa à morte da atriz e cineasta Susana de Moraes, apresentada sempre sob a chancela de “filha de Vinícius de Moraes” e “~companheira~ de Adriana Calcanhotto”. Dois motivos para espetacularizar a morte de Susana. Se citá-la como herdeira do poetinha já me incomoda, a intenção de “fazer manchete” com seu relacionamento homoafetivo, ainda por cima com uma cantora de grande alcance midiático, me apavora e me enoja. Sobretudo porque a maioria dos meios ainda tem os dois pés atrás para tratar do amor entre pessoas do mesmo sexo: “companheira”. Companheiro se tem é em boteco, nas aventuras da vida, em viagens, e , claro, um amor pode sim, ser companheiro. Mas ninguém vive uma relação amorosa com outra pessoa por 26 anos por companheirismo.
Pior ainda foi ler os comentários destas matérias, indiferentes ao fato de que elas tratam da morte de uma pessoa, querida por outras, que continuam vivas e sofrendo sua ausência. “O corpo vai ser cremado aqui, mas a alma já queimava em fogo e enxofre”. “A Adriana é linda, podia ter homens maravilhosos. Sinceramente: não entendo”. “Os 44 bico largo (sic) estão largo no Santanás”. Estas são apenas algumas das atrocidades a que tive acesso. Jamais vou entender como o amor entre duas pessoas pode ser capaz de despertar tanto ódio. A ironia amarga é que tanta fúria vem, não raramente, de quem prega, pelos Facebooks e Instagrams da vida afora: “Mais amor, por favor”, “#gratidão”. Dizer que ~Deus criou o homem e a mulher, um para o outro~ é fácil. Mas fazer sexo só para procriar como dizem que esse mesmo Deus prega ninguém encara, né? Viver em um mundo em que as pessoas são capazes de atacar às outras com tanta violência (física, diga-se de passagem) e em que Reginas Duartes representarão, na ficção, um grupo tão oprimido na vida fora da telinha do plin-plin, só me faz repetir a própria Regina: “eu tenho medo.” (In: Campanha presidencial, 2002).
Se eu pudesse voltar no tempo e meu pai perguntasse novamente à Júlia de 14 anos se ela prefere namorar meninas, certamente eu diria:”Não, pai. Mas obrigada por perguntar.” E enquanto eu viver, discordarei da Regina, valendo-me da lógica de Marcelo Camelo, e possivelmente arriscando uma cantarolada no verso, tão urgente quanto de direito: “Abre os teus armários.”