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Sopa de letrinhas

julia coluna
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Não é raro que antes das sete os olhos já estejam cravados na minha cara. Às vezes, uso todo meu pouco talento de atriz e atuo ainda estar dormindo – torcendo para ser convincente. Não sei se por perspicácia sua ou inaptidão artística minha, acabo despertando com um toque quase sempre de leve no rosto. Tento ter raiva pelo sono interrompido, mas quando percebo já estou mostrando as canjicas pro seu lado. Absolutamente derretida.

Fui avisada, prevenida: “você vai acabar se rendendo”. Mas minha petulância seguiu o clichê de quem se julga imune à conversa mole: paguei a língua. Sigo quitando a dívida diariamente, em prestações que perdi de vista faz tempo, por cada jura que fiz. “Na minha cama, jamais.” “A última palavra é minha.” “Não vou ceder a capricho algum.” Engoli palavra por palavra, e nem posso me queixar, pois venho me deleitando com a sopa de letrinhas. Hoje até rio dessas certezas que eu dizia como se fossem leis. Nem sei mais o gosto da vida sem o tempero de cada fonema que desceu goela abaixo toda vez em que fiz – e faço, satisfeitíssima – suas vontades.

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Nunca mais soube o que é estar sozinha. Vez ou outra, preciso repreender quando me segue sem convite a um lugar onde não deveria estar – o paradoxo de que para estar perto, às vezes é preciso se afastar. Ao mesmo tempo, gosto de saber que não amargo mais os dias difíceis sem seu olhar silencioso e onisciente. Ainda que não esteja, seus sinais estão sempre por aí. Ontem mesmo tirei um fiapo dourado da calça que usei quando sua cabeça repousou sobre meu colo.

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Conheço seus ritmos e rituais: a manhã acelerada é normalmente seguida por tardes longas e preguiçosas, intercaladas com bisbilhotagens no meu trabalho ou uma olhadela que indaga “o que ‘cê tá comendo aí?”. A noite é só sua, sempre: ninguém sabe das suas andanças entre o pôr e o nascer do sol. A menos quando seu chamado rompe o sigilo, num tom que insiste até se fazer escutar, não importa a hora. É quando sei que o pote de ração está vazio e sigo seus passos para rapidamente remediar o problema – sem metade de sua graciosidade felina.

 

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