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Um bonde chamado machismo

julia coluna
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Dia desses, mesmo contra todas as minhas convicções, eu estava cansada demais para fazer o “rolê”, como dizem os jovens, de ir à rodoviária e pegar um interestadual para ir passar o fim de semana com a minha mãe. Rendi-me a um aplicativo de caronas. Procurei por caronas de mulheres, mas não havia oferta. Tinha um rapaz que ofereceu a carona bem no horário que eu queria, que eu poderia pegar praticamente na porta de casa e descer na porta da casa da minha mãe. Fui ver as avaliações dele: todas diziam que era um motorista responsável, que a viagem foi tranquila, zero reclamações – embora a maioria dos avaliadores fossem homens. Decidi encarar.

No dia da viagem, cheguei algum tempo antes do combinado, sintoma infalível da minha pontualidade doentia. A carona atrasou, mas tudo bem, vida que segue , o trânsito da cidade está um inferno mesmo. Quando finalmente chegou, o carro estava com o motorista e dois “caronas”, normalmente o que se faz nesses aplicativos para todo mundo viajar confortavelmente. Entrei, cumprimentei e todos foram simpáticos. Fiquei na minha porque vi que eles, todos homens, eram conhecidos e falava de situações e pessoas específicas. Antes de deixarmos a cidade, entrou mais um passageiro.

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E foi a partir daí que tive um laboratório particular de como o machismo é naturalizado e se manifesta em pequeníssimas ações. Em nenhum momento qualquer um dos meus parceiros de viagem foi deliberadamente mal-educado, grosseiro, ou me assediou de qualquer forma. Mas bastou o último caroneiro entrar para que eu me tornasse invisível. Estava sentada na janela, o outro passageiro também, e o derradeiro tentou entrar pelo lado dele: “Ô irmão, dá a volta e fica na janela de lá”. Em momento algum foi dirigida a palavra a mim ou cogitada a possibilidade de que eu poderia querer, já que paguei o mesmo preço de todos, viajar perto da janela. Fiquei invisível, minha opinião não contava, virei café-com-leite. Fui sentada no meio, espremida entre dois homens grandes que sequer fizeram esforço para fechar as pernas, como qualquer mulher que usa transporte coletivo pode atestar. Apoderam-se dos bancos como se apoderam de todos os espaços físicos e sociais: porque historicamente foram ensinados que podem. Eu, acuada no assento, fiquei sentadinha na ponta do banco, sem nem poder recostar.

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Não bastasse isso, o passageiro derradeiro DORMIU e ficou caindo em cima de mim, mesmo quando eu tentava, com “ombradas”, impedir que ele tomasse ainda mais o meu espaço. Todo esforço, claro, foi em vão. Pensei em quantas vezes peguei um ônibus morta de cansaço e de sono e não dormi porque viajei sentada ao lado de um homem, tive medo. Pensei em quantas amigas e conhecidas me relataram inúmeros episódios idênticos. E pensei no quanto nem passou pela cabeça desse cara que ele corria algum tipo de risco se dormisse viajando ao meu lado ou, mais precisamente, caindo em cima de mim. Repito: em nenhum momento a intenção dos meus colegas de viagem foi me deixar desconfortável deliberadamente. Mas a naturalização do machismo sequer os fez cogitar que eu poderia estar.

O fim da história tem uma cereja do bolo: quando o dorminhoco desceu, o cara que estava no banco de trás disse: “Nossa, eu estava segurando pra não rir dele caindo em cima de você, ‘tava muito engraçado!”. Não acho que tenha sido de maldade ou por “gostar de ver mulher sofrer”, mas por essa noção de “foi uma piada, foi uma brincadeira”, de que homens podem passar a vida brincando, sendo meninos, que serão socialmente perdoados por qualquer chiste equivocado ou maldoso. Serão eternas crianças, mesmo sendo machos enormes e barbados. Mas pensando bem aqui, talvez o moço realmente tenha dificuldades de se desfazer da infância, de viver norteado pelo que é ser um moleque. Durante a viagem, ele comentou que iria ao que seria “o maior show do país, maior que o Rock in Rio, maior que qualquer um, o melhor que já teve”. “Qual, cara?”, perguntou o motorista. “Sandy e Júnior”, respondeu o piadista.

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