Pouco a pouco, começo a ver os sinais do desgaste da relação de intensa convivência forçada entre mim e minha casa. Um vidro quebrado aqui, coisas mil que se descolam de sua superfície de aderência e outros tantos cantos que, um dia esquecidos, agora começam a demonstrar fadiga decorrente de seus recém-descobertos papéis. Poderia, mas seria leviano afirmar que este foi o caso da torneira da cozinha. Desde sempre, sabia que era só uma questão de tempo até que ela parasse de funcionar. Dito e feito. No dia 1.678 do isolamento social, ela deu seu último suspiro enquanto eu encarava mais um infindável turno de louças.
“Bombeiro”, “hidráulico”, Google, pesquisar. Vi o número de uma empresa, salvei no celular e fiz o contato via WhatsApp, afinal, quem liga hoje em dia?
“Bom dia! Preciso de um bombeiro hidráulico, e achei o número de vocês no Google. Vocês prestam este serviço?”
Fui ver uma coisa ou outra pela casa e quando voltei ao telefone para ver a resposta, fiquei paralisada por uns segundos.
“Vc é feminista?”
“Pq eu n trabalho com feministas”
“Qual é o seu problema, vc n esta conseguindo lavar sua louça pois ela esta quebrada”
(sic ad infinitum)
Absurdada por ter sido respondida assim por um lugar que presta serviços, fui verificar e percebi que tinha digitado o número errado. Assim, minha busca por uma nova torneira acabou caindo no celular de um machista (sempre) a postos para oprimir uma mulher. Um babaca com oportunidade. Como ele sabia que eu sou feminista? Pela mensagem de saudação que aparece do lado do meu nome e foto no WhatsApp. Logo depois que bloqueei o número, chega uma segunda mensagem, de outro telefone, se desculpando “pelo funcionário”, que “seria punido” e me perguntando de que serviço eu precisava. Sendo que NÃO SE TRATAVA de um número de bombeiro hidráulico. Até que ponto vai o empenho masculino para oprimir/assustar/perseguir uma mulher gratuitamente? Bloqueei o número também.
Mas não consegui bloquear o pensamento sobre o quanto nós, mulheres, estamos vulneráveis nas situações mais ridiculamente banais do nosso cotidiano. O quanto eu, com todos os privilégios sobre os quais me debruço, não tenho resguardo algum contra um imbecil de ocasião que tem meu nome e meu número de telefone – talvez a minha foto. O quanto, para outras tantas mulheres, a roleta russa da opressão não faz gracinha no WhatsApp, mas aparece igualmente do nada e com idêntica gratuidade, exerce uma violência não raramente fatal. Pensei também no quanto cobram de nós um silêncio que vem sendo historicamente imposto. “Mas precisa colocar a palavra ‘feminista’ na saudação do WhatsApp?”, como se fosse uma afronta a minha liberdade de ser quem eu quiser sendo que isso em nada afeta qualquer outra vida – a não ser para melhor, sobretudo a minha, neste específico caso.
Muitas mulheres foram silenciadas, tantas com o silêncio mais absoluto que existe, para que eu hoje – e sei que nem todas têm a mesma oportunidade – possa, ao contrário, insistir em não ficar calada. Para que eu possa chamar de machista, MA-CHIS-TA, publicamente, um homem que me responde como fez quando eu preciso de um conserto hidráulico em casa – ou em absolutamente qualquer outra situação. Para que chegue um dia que a gente não precise ter medo de ter um homem do outro lado da linha, ou da porta, que pode ameaçar nossa segurança de alguma forma.
Minha nova torneira, trocada com rapidez e profissionalismo pela empresa com a qual quis fazer contato desde o início, não vaza mais. Quanto a mim, firmo compromisso de um vazamento perene, uma correnteza imparável, contra quem quer que seja que tente nos calar, constranger e apagar. No WhatsApp e na vida, pelos tantos silêncios e torneiras quebradas que ficaram pelo caminho.