Muito tenho visto a repetição, como uma toada de exército (assim que imagino em minha cabeça), dos dizeres: “Deixem nossas crianças em paz”. O que não consigo entender é que crianças e que paz. Porque certamente o “nossas” não se refere a toda a população infantil e definitivamente os argumentos que repetem o “mantra invertido” acima não seguem qualquer preceito de paz.
Tornou-se mais importante defender a perpetuação de estereótipos de gênero incabíveis do que mostrar qualquer sinal de empatia. O problema é dizer que não existe brinquedo de menino e menina? Não existe mesmo, criança faz o que quer! Não adianta dizer que menino só pode jogar bola. Não adianta prender a menina a fogõezinhos. Na maravilhosa e indomável imaginação de criança, uma bola vira bebê em dois tempos, prontinha para ser ninada, e um fogão de mentirinha pode se tornar um carro de Fórmula 1, um avião, um carro de bombeiros, ou qualquer máquina possante que integra a seção “de menino”. Spoiler: poder fazer isso sem a culpa de “larga isso aí que é brinquedo de menino/menina” é muito mais saudável.
Quando se argumenta em defesa das crianças, eu fico encucada tentando descobrir se o filho da Dona Cacá, Nino, seria contemplado quando menino: gay, hoje um artista que performa como drag queen e que aposto meu mindinho direito que foi chamado de “viadinho”, “bichinha” e outras variantes da mesma crueldade durante a vida escolar. Também não consigo parar de pensar se o “nossas crianças” teria incluído meninas como a filha da Cris, Mariana, que teve a coragem, em nome de uma causa maior, de revelar o racismo que sofreu, quando disseram, sobre sua pele, que tinha “cor de bosta”. Isso tudo só para nos mantermos na cidade.
“Nossas crianças” jamais se referirá aos 2,7 milhões de meninos e meninas vítimas do trabalho infantil, segundo dados da semana passada, divulgados pela Rede Peteca, que lançou o Mapa do Trabalho Infantil. Tampouco “nossas” serão as crianças que foram mortas e feriadas no atentado terrorista na Somália, o mais letal da última década. E não tem #PrayforSomalia que seja capaz de injetar empatia nas pessoas. Digo mais: não adianta “pray” em um mundo em que algumas pessoas estão muito mais vulneráveis às mazelas da vida que outras.
Enquanto toda noção de “nossas” for excludente, preconceituosa, discriminatória e presa a estereótipos que aprisionam, nenhuma criança, no mundo inteiro, será verdadeiramente livre. E nunca teremos paz em sua plenitude.
Mas o que eu sei da vida, né, gente? Eu jogava futebol com meus primos e eles brincavam de Barbie comigo.