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Antes que eu me esqueça

julia pessoa coluna 1
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É engraçado que, por tantos anos já, eu tenha um aviso semanal muito particular para minha vaga memória: “Antes que eu me esqueça”. Muitas vezes, no entanto, acabaram me escapando da lembrança ideias que tive para o que eu poderia dizer aqui, traindo minha própria lei interior de registrar à tinta ou em bytes os pensamentos que podem, talvez, virar a matéria-prima do meu sustento (e até certo ponto, a minha própria): sequências de palavras. Em outras ocasiões, as palavras pareceram me escorrer dos dedos, como se tivessem vida própria, prontas para buscarem sentido em algo que era impossível de ser esquecido.
Tudo que escrevi e vivi debruçada nesta pequena janela da internet me abriu um mundo, para bem e para mal. E pensando nisso, percebo que passei muito tempo afogada numa angústia de não me esquecer, de não deixar passar batido o que passa impune, de ter sempre um botão de alerta aceso. A memória é imprescindível, e não se esquecer é um mecanismo de sobrevivência e de justiça, como bem se diz sobre os feitos da ditadura: “Nunca esquecer, nunca perdoar.” O mesmíssimo vale sobre a treva movediça em que enfiaram o Brasil uns pares de anos atrás, e da qual mal conseguimos erguer a cabeça para tentar respirar.
Entretanto, não se permitir o esquecimento é estar em trabalho constante, e nunca se permitir o merecido descanso. Quando não nos damos este aval, ele é imposto. Pelo corpo – nosso ou alheio – que é finito, por dores ainda mais urgentes, por um esquema como o das máquinas modernas e sua dita obsolescência programada.
E assim pretendo continuar me lembrando, e deixando cravadas as minhas palavras, apólice de seguro contra a amnésia. Talvez com os pés mais fincados no chão, talvez menos ainda interessada em qualquer “tioria”, e um tanto certa de que a raiva move, muito mais do que a convicção de outros tempos de que “amar e mudar as coisas” me interessaria mais. Certas transformações simplesmente não podem surgir do amor.
Se antes procurei afirmar um compromisso inadiável com a memória de coisas que precisam ser ditas, hoje o reafirmo, mas sem ter a pretensão de carregar este peso sobre meus ombros. Firmo antes um trato comigo mesma, para me manter atenta e forte. Que eu sempre me lembre e tente fazer lembrar, porém sem as amarras de uma obrigação angustiante, ainda que por uns segundinhos, para recuperar o fôlego. Pela memória viva. Mas antes, que eu me esqueça.

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