Se meu amigo Breno Motta fosse um personagem, certamente ele teria muitos bons bordões, mas o mais recorrente ou famoso seria “Respeita minha história!”. É quase sempre dito em um contexto de piada, debochando de algum desaforo que leu na internet, de alguma paquera malsucedida, retrucando alguma piada dos nossos amigos. Sempre me diverte, principalmente porque as palavras vêm acompanhadas da sua gargalhada, uma das que eu mais amo na vida. Mas, vez ou outra, o Breno fala sério, e está é pedindo respeito mesmo. É menos raro do que eu gostaria ou do que é justo e de direito, mas sendo gay e artista, meu amigo precisa demandar algo que lhe devia ser inato e universal – como para todo mundo -, respeito.
Eu poderia falar hoje, na última semana em que trabalhei como repórter da Tribuna de Minas (mas esta coluna segue atenta e forte), sobre o respeito que preciso frequentemente demandar por ser mulher, por ser jornalista, produzir conteúdo público de opinião – porque não, esta seção não é, como muitas vezes dizem uma “matéria” – e ser constantemente questionada e atacada. Em minhas capacidades intelectuais. Em minhas relações familiares. Em minha vida pessoal. Em minha vida sexual (pasmem!). Em minha competência profissional.
Ao longo dos anos, fui chamada de burra, incompetente, de “lixo”, de chifruda, de mal-amada. Sugeriram que eu “entrasse no Tinder porque eu precisava me desestressar”, “que eu precisava de um vibrador do tamanho de um extintor de incêndio”, disseram que meu pai me abandonou e por isso sou feminista ( e também pelo “sovaco cabeludo” – sem sequer saberem como é o meu-, “por ser amargurada e por ter falhado em mais de quinhentas dietas”). Essa última coletânea de pérolas recebi em um envelope endereçado a mim, uma cartinha, porque o ódio não se basta em uma caixa de cometários, foi preciso se dar ao trabalho, em pleno 2020, a usar os Correios. Haja tempo e empenho. Eu poderia fazer coro ao Breno, e dizer, com propriedade: “Respeita a minha história”. Mas além de parecer bobo, neste contexto, bater palma pra doido dançar (“eu passarinho!”), me parece egoísta quando eu vejo que a própria História, essa com H maiúsculo, está sendo não apenas desrespeitada, mas violada diariamente.
Quando temos um ministro que justifica a alta desenfreada do dólar como algo “bom para todo mundo”, já que tinha até “empregada doméstica indo para Disney, uma festa danada”, sabemos que uma linha foi cruzada. É um desrespeito, uma afronta, uma violência verbal, uma manifestação descarada de ódio de classe, uma legitimação para uma classe média besta e metida a rica que ama o discurso de que “aeroporto virou rodoviária”. Um respaldo, ali numa fala oficial. É de uma extrema falta de caráter e de empatia incomodar-se em ver quem nunca teve acesso a alguns privilégios aproximar-se deles: ter casa, eletrodoméstico, carro, andar de avião, ir à Disney (nunca vi, nem comi, só ouço falar). E é de uma cegueira histórica tamanha não enxergar o quanto a classe trabalhadora sempre foi destituída do acesso a bens materiais e imateriais, e agora cada vez mais, destituída também de seus direitos. A alta do dólar nunca será favorável a quem está do lado de fora do clubinho de vantagens, e isso inclui eu e você, mas sobretudo quem está servindo, cozinhando ou limpando para seus integrantes. Sempre foi assim. Neste país em que se ama tanto ter uma pulseirinha para a cafonice da área VIP, a ascendência social ou o aumento do poder aquisitivo de quem sempre esteve na base da pirâmide social causa aversão, nojo e revolta. E verbalizar isso é um ataque direto à quem é vítima da nossa desigualdade social abissal. É não ter o mínimo de conhecimento sobre o Brasil – ou desdenhar do conhecimento, dos saberes como um todo, como tem sido hábito nos tempos atuais. Não há possibilidade de justiça social com o dólar em alta, nós já vimos esse filme (que ainda não foi censurado). Respeita a História.