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Bichinho

julia coluna
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Todos os dias quando eu acordo, ela já está me esperando, observando os últimos minutinhos do meu sono. É tão natural e tão cotidiano que eu até me esqueço que um dia eu dormi sem ela estar do meu lado, tão linda me olhando. Quando viajo, sinto falta do colchão tremendo quando ela chega completamente sem aviso. De receber uns carinhos meio estabanados, mas sempre tão genuínos. De ter a privacidade completamente violada o tempo todo. E de nunca mais estar sozinha. Contra todas as expectativas baseadas nos meus 33 anos, eu e minha amiga Dudu adotamos uma gata, alegria lá de casa.

Vejam bem, eu nunca quis ter um bicho de estimação. Sempre convivi com os do sítio da minha vó, de galinha, pato e tartaruga até cachorros. Não é que eu não goste de animais, eu só nunca pensei em ter um meu- no caso dos cães, eu tinha um medo paralisante mesmo. Até que, mais uma vez na vida, paguei a língua. Hoje faço tudo que jamais pensei e cheguei a dizer que não faria: durmo com a gata, troco fácil alguns programas por um dia inteirinho alisando os pelos dela, beijo, e sim, chamo de filha. Apesar disso, acho completamente deturpada a ideia de quem acredita, de fato, que é “mãe” de pet. Eu não questiono forma alguma de amor (até porque acredito que se não emancipa e faz mal, não é amor), e é claro que acho possível, sim, amar um bichinho tanto quanto se ama um filho – qual é a métrica de um sentimento?

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Dito isto, nenhuma, nenhuma pretensa “mãe de pet” sofre as mesmas opressões, privações e julgamentos do que uma mulher que vive a maternidade. Nenhuma “mãe de pet” é questionada sobre “dar conta do emprego” porque tem um animalzinho em casa. Desconheço gateiras e cachorreiras que arquem sozinhas com seus bichos e tenham que suar a camiseta pra receber pensão – e ainda serem tachadas de interesseiras por isso. Eu poderia fazer uma longa lista para dizer o óbvio: criar um bichinho não é o mesmo que criar uma criança. E não, não quero regular como as pessoas vivem a própria vida: chamem de filho, filha, do escambau – eu mesma chamo a minha, como disse. Mas discursos importam. Não invisibilizemos levianamente, por causa de uma pirraça de gente mimada, a luta real das mães, já tão silenciadas, excluídas e cobradas o tempo todo. Por todo mundo.

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Aliás, acho muito perigoso esse discurso de “gosto mais de bicho do que de gente” quando tomado de forma universal e literal (e olha que nem tenho tanta fé na humanidade). Acho que por trás dele tem uma lógica muito cruel e zero empática de que certas vidas humanas valem menos do que outras. Antes de ser metralhada, é importante que eu diga que os animais devem ser cuidados, respeitados e amados, sim. Não se trata, claro, de ser contra isso. Mas me causa um estarrecimento absurdo ver que a morte de um jovem negro, brutalmente executado pelo segurança de um supermercado, causou menos comoção (e uma certa desconfiança) do que quando um cachorro foi também violentamente assassinado em um estabelecimento do mesmo tipo. É claro que, para gente que não se desola ou se indigna com a morte desse rapaz, vidas negras têm menos valia. E a realidade nos mostra isso diariamente: nas operações policiais, nos índices de mortes violentas, na falta de acesso a condições básicas para uma vida decente, nas entradas de serviço, em tantos lugares nos quais nossa branquitude é blindada.

Sinceramente, quem se revolta virtualmente contra a inaceitável (sim) morte do cãozinho, mas lança um “tem que ver o que o rapaz estava fazendo” quando descobre que ele foi assassinado com um “mata-leão” não devia era ter bicho algum – muito menos filho -, porque é terminantemente incapaz de cuidar de qualquer vida além da que pulsa no limite do próprio umbigo.

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