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O plano cobre, Silvia.

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Era uma vez Silvia. Uma vez só mesmo, porque se dividisse em três, cinco ou 12 sem juros, ela ficava apavorada, mortificada. Silvia era nascida, criada e moradora na Zona Sul do Rio e odiava pobre e qualquer referência à pobreza – ou restrição monetária, como talvez dissesse o governador de São Paulo Geraldo Alckmin. Todo dia quando saía pro trabalho, dava “Bom dia” ao porteiro, seguido de uma cara de poucos amigos, que fazia já de costas para ele, ao perceber que o homem tinha dado uma espiadela nos classificados d’O Globo” assinado pela vizinha de cima. “Até parece, né gente? Tá querendo enganar quem? Vai comprar apartamento? Me poupe”, pensava, enquanto tomava rumo da garagem para entrar em seu carro com ar condicionado.

Certa vez, quase morreu de raiva, daquelas  silenciosas, que vão corroendo por dentro. Um amigo seu, professor do Estado, veio contar, todo feliz, que tinha comprado uma cobertura em Vila Isabel, fazendo um clássico financiamento da Caixa, que pagaria pelos próximos 57 anos nos quais nem saberia se estaria vivo. Mas que se dane, tinha saído do aluguel. Ela, claro, deu um sorriso amarelo de “Parabéns”, e pensou, logo em seguida, com todo seu recalque: “Pôôôô, cobertura? Depois fica fazendo choradeira por causa de piso salarial, esse povo não quer é trabalhar, não é possível.”

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Mandou embora a Tatiana, empregada que fazia uma comida de se saborear rezando, depois que ela recusou da dadivosa patroa uma TV véia de 29 polegadas, daqueles modelos de tubo. “Ah, obrigada, Dona Silvia, comprei uma igual a da senhora no Natal, parcelada. Pode dar pra outra pessoa”, disse a educadíssima Tatiana. “Que afronta! Que insolência! Como ela ousa negar uma gentileza dessas? Pobre não sabe ganhar as coisas mesmo, não sabe reconhecer caridade”, pensou Silvia, antes de começar a matutar um motivo pelo qual pudesse botar a Tati na rua por justa causa. Teve também aquela vez em que trombou com a Luciana, uma conhecida que era cantora e compositora. Luciana reclamou que ia adiar as sonhadas férias na Europa, porque o euro tinha disparado a subir. “Ué, mas também não quer ter um emprego sério, cara!”, respondeu mentalmente, soltando para Luciana, em tom de (falsa) lamentação, apenas um “Tá foda.”

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O engraçado e/ou bizarro é que Silvia pensou que passaria a vida ilesa por estes pensamentos que lhe invadiam a cabeça ao menor sinal de falta de dinheiro abundante e cheiro de área VIP. “Pobre gosta de ser chacota, adoravam o Caco Antibes, amam Zorra Total”, dizia a si mesma, entre risinhos. Mas naquele dia não. Por uma coincidência dessas que só acontecem em algum boteco do subúrbio do Rio de Janeiro, Tati, a ex-empregada de Silvia, encontrou-se com o tal amigo professor quando tomava sua cervejinha de domingo, e ambos começaram a se lembrar das caras tortas de Silvia para suas conquistas de classe socioeconômica ascendente. Já meio zoados, ligaram para mais meio mundo e decidiram: dariam uma lição na arrogância de Silvia.

De combinação com o porteiro, na próxima segunda, depois que Silvia torcesse o nariz para a leitura de classificados do homem, Tatiana e o professor estariam na garagem, de butuca. Certeiros como relógio suíço, quando a moradora ia entrar em seu carro, dois encapuzados a abordaram e enfiaram-na em seu próprio automóvel. Silvia debatia-se no banco de trás,  mas tinha os pés e mãos atadas, e  a cabeça coberta por um saco de tecido. Depois de uma longa viagem, e de ter sido carregada no colo para algum destino, Silvia percebeu que estava na Zona Norte: o calor estava desértico. Tiraram-lhe a venda, e viu que estava em um churrasco de laje, e de pronto reconheceu seu amigo professor, Tatiana, o porteiro, Luciana, e tantos outros “pobres” que lhe cruzavam o caminho quase diariamente. Sentiu um alívio imediato por não ter sido sequestrada por alguém que lhe pudesse violentar, mas ficou encafifada com o que estava acontecendo. “A gente só quer que você pare de torcer esse nariz pra gente, Silvia. Vem ser feliz e deixa de ser nojentinha”, disse Luciana.

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E deram-lhe um copo Nadir nº 2 cheinho até a boca de cerveja gelada. A carne estava quase pronta na churrasqueira feita com uma grelha posicionada sobre vários tijolos e com carvão ao centro, um primor da engenharia da gambiarra. Silvia lembra-se de ter, inicialmente, ficado horrorizada com as piadas em torno das peças de picanha: “Ó, chama o Tony, que aqui é Friboi!hahahaha”. “Só podem ter visto no intervalo da novela, aposto”, alfinetou a sequestrada em pensamento. Mas o tempo foi passando, a cerveja foi caindo bem, a linguicinha estava uma delícia, e o queijinho na brasa era um deleite gourmet. E toma que desce caipirinha também.

Lá pelas tantas, quando Silvia já sambava abraçada com o entoador dos versos de algum pagode dos anos 1990, Tatiana apareceu com uma bandeja lotada de pastéis de camarão. Tão quentinhos que quando eram mordidos, vinha aquela brisa quase igual à da que se tem na orla carioca neste verão de 2015: escaldante. Os camarões pareciam lagostas de tão graúdos e estavam imersos em um cremoso recheio de Catupiry ou  similar que valesse o nome. Silvia não teve dúvida. Em duas dentadas, mandou ver no pastel goela abaixo, empurrando com uma golada farta na capirinha.

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Nem bem o outro verso do pagode chegou e Silvia foi ficando vermelha e empelotada. Alguns disseram: “Isso é coisa de rico, que tem mania de doença, não pode ver um hospital.” Mas quando a coisa ficou séria e viram que era uma reação alérgica das brabas, logo alguém se prontificou a levá-la ao atendimento mais próximo, no caso o Hospital São Francisco, na Tijuca. Como o trânsito estava bom, a viagem foi curta e Silvia tentou ir segurando a onda, mas a dificuldade de respirar só aumentava.

Na recepção, quase com a glote fechando enquanto terminava de preencher os papéis, Silvia, que neste momento já fedia a cachaça e a cerveja da churrascada, teve que ouvir o desdém da recepcionista, em alto e bom carioquês:

– É ‘SUISH’, minha filha?

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Ao que Silvia, tendo uma epifania sobre si mesma, teve que responder:

-Não, o plano cobre.

Essa é uma obra de ficção. Quaisquer nomes ou situações que tenham se repetido em algum momento da vida real terão sido meras coincidências. Silvia passa bem e jurou nunca mais comer camarão ou tomar caipirinha de cachaça (mas esqueceu-se que o camarada do samba pegou seu telefone).

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