De dentro da minha bolha branca e de classe média, eu tive dias das crianças muito felizes. Uma infância muito feliz, na verdade. Sendo menina, claro, não escapei de ser criança sempre com alguém me dizendo como eu deveria me comportar pois era “uma moça” (mesmo antes dos 10 anos): “fala baixo”, “senta com as pernas fechadas”, “menina não faz isso”. Desde muito cedo também, aprendi que meu corpo só seria aceitável se atendesse a determinados padrões, o que me fez ouvir, ainda muito criança despautérios como eu ter que depilar o buço porque “mulher de bigode nem o diabo pode” (aos 10); ou que eu precisava ir a um médico para emagrecer (a vida toda, desde uns 7 anos), porque estava gorda. Não raramente, os “alertas” vinham sob a ameaça: “senão não arruma namorado”, sexualizando minha existência e vinculando-a, necessariamente a um homem. Absurdo atrás de absurdo.
Mas essa coluna não é sobre mim, até porque essas vivências são a de quase toda garota. Com os privilégios que sempre me cercaram, sobretudo a possibilidade de acesso a informação que eles me permitiram, fui crescendo e vendo que há muito mais na vida do que sentar de pernas cruzadas porque sou mulher. Cada vez mais, vejo o quanto a construção da infância que se faz para nossas crianças. No mesmo país em que não se aceita que a escola ensine sobre gênero e sexualidade, sob o argumento descabido de que “não se ensina sexo às crianças”, 69, 2% dos casos de violência sexual contra crianças ocorrem dentro de casa. A mesma casa em que, segundo a patrulha do “menino veste azul, menina veste rosa”, “quem ensina sobre sexo é pai e mãe”. A conta não fecha.
Não importa que cor vistam, as meninas continuarão a ser expostas em programas de TV em trajes de banho que elegem “o corpo mais bonito”, ouvindo perguntas de um velho branco e rico que indaga se preferem “sexo, dinheiro ou poder”, antes que sequer saibam realmente o que cada um deles significa. Do mesmo modo, os meninos que crescem aterrorizados pela ideia de vestir cor de rosa se tornam eternos moleques com o aval da sociedade, que não raramente os legitima ao ponto de torná-los seus representantes. Como resultado, temos uma legião de meninos que borram as calças quando confrontados por jornalistas – ou por quem quer que seja -, que menosprezam as mulheres e não conseguem se comprometer sequer com os outros moleques com quem brincavam até ontem.
Num país em que se adultiza as crianças cedo demais, com piadas naturalizadas de “namoro” e, ao mesmo tempo, adultos completos, aterrorizados em sê-lo, só fazem piada de litrão, boleto e ficam presos num looping nostálgico de Mamonas Assassinas e festas “retrô” da década passada, é difícil saber quem é o público alvo do mercado no dia 12 de outubro. Mas atrasada, venho desejar, pelo dia de ontem, um voto que estendo ao ano todo para as meninas e meninos: que eles tenham a chance de serem realmente crianças. Na infância.