Enquanto Antônio lhe ajeitava a cabeleira muito longa, farta, e loira sobre aquelas capas de salão, ela tinha olhos fixos no espelho. Tinha acordado cedo só pra isso, para antes de enfrentar o desenrolar do dia ir trocando de cadeiras e ter alguém que lhe massageie a cabeça com água perfeitamente morna, depois alguém que lhe desembaraçasse os fios e os jogasse pra lá e pra cá, medindo seu caimento com os ângulos do rosto. “O que vai ser hoje?”
“Pode cortar tudo, Antônio”. O artista das tesouras, acostumado aos traumas de mulheres escandalizadas querendo cortar “só as pontinhas”, foi sugerindo: “Ah, podemos fazer um assimétrico mais ou menos aqui na altura do ombro, e tal…”
“Não Antônio, corta tudo mesmo, quero curto, curtíssimo, tipo três dedos de fio.”
“Tá doida, garota, essa cabeleira até a cintura? Vai tosar tudo assim de uma vez só?”
“Isso.”
“É isso que você quer? Tem certeza?”
“É sim, certeza absoluta.”
“Adoro.”
E quase cochilou com o barulho das tesouradas ao passo que sentia a cabeça pesar menos, acordada por sensibilidades diferentes da nuca cada vez mais exposta, desprotegida, vulnerável. Parecia estar numa sorte qualquer de ritual, no centro de um círculo de madeixas muito loiras, e com um traje que, dependendo do ângulo, se parecia com uma túnica.
Um giro na cadeira e Antônio lhe apresenta sua nova cara: “Taí, gata. Gostou?”
Ela passou a mão pelos fios curtos reconhecendo-se na pessoa que o espelho refletia, e pressionava o indicador e o médio em uma mecha, como uma tesoura fechada, medindo o comprimento. Antônio era fera: três dedos exatos de comprimento.
“Amei, mas tira mais um dedinho?”
Dito e feito.
Agora os cabelos deixavam de ser os últimos fios que a ligavam a tudo que ficou no passado. Assim, curtinhos, só poderiam se ligar em uma extremidade, a uma só coisa: ela própria.
“Adoro que você radicaliza, né?”
“Talvez semana que vem eu raspe, Antônio, mas vamos ver”.