Era uma segunda-feira como qualquer outra, em que é difícil levantar da cama com hora marcada, ainda mais com a adição de uma figura saudosa ao leito: o edredom. Como sempre, cheguei à redação, fiz atualizações no site e antes que começasse a levantar os afazeres da semana, fui checar meus e-mails profissionais.
Uma das coisas mais gratificantes que esta coluna me proporcionou foi a chance de realmente dialogar com o leitor, receber e-mails, inboxes e sinais de fumaça dizendo que se identificam com minha escrita, que pensam como eu, ou, ao contrário, que discordam completamente.
Porque escrever é doar-se, em pequena ou grande escala, e pouca coisa é mais infeliz do que uma doação que tem em troca o eco de um vazio, a indiferença completa. Assim pensava eu.Pois bem, abro minha caixa de entrada. Título do e-mail: “JÚLIA”. Abro. Leio. “Pessoa Júlia, você além de porreta é muito engraçada (sic). Certamente gostosinha. Até o próximo domingo.” Reli este absurdo um zilhão de vezes para ter certeza de que não era a segunda de manhã que embaçava minha leitura, mas estava lá, no meu Outlook profissional: “CERTAMENTE GOSTOSINHA” (na minha cabeça, veio em Caps Lock). Fiquei pensando que diabos passa pela cabeça de alguém para escrever algo assim a uma mulher que não conhece, não lhe concedeu qualquer intimidade e, pior ainda, em seu e-mail profissional, um instrumento de trabalho. Até agora, sigo sem conseguir encontrar qualquer resposta que torne isto admissível.
“Foi só um elogio”, muitos vão dizer. E muitas rebaterão. O que pode haver de elogio em um homem desconhecido deliberadamente especular sobre minha suposta “gostosice”? “É assim mesmo”, dirão outros tantos – e, pior, outras tantas, resignadas. E repetirão este conformismo ao falar de tantos “gostosa”, “te chupo todinha” e grunhidos animalescos que qualquer mulher já ouviu ao passar na rua. E justificarão tais assédios com clichês revoltantes como “também com essa saia curta/decote/batom vermelho”, “estava pedindo andando sozinha”, “estava bêbada, está sujeita a isso”.
Guardadas as devidas proporções, a lógica por trás do “gostosinha” no meu e-mail é a mesma que faz do Brasil o 5º país do mundo em índices de feminicídio (Mapa da Violência 2015, ONU): a ideia de que a mulher e seu corpo estão sempre disponíveis à opinião, ao toque e ao prazer alheio. É o mesmo raciocínio tristemente repetido por pais de meninas: “Parei de ser consumidor, virei fornecedor”. Somos produtos? De que tipo? Somos perecíveis? Para consumo de quem? Como se consome?
Reconheço, o limite entre a cantada, o flerte e a paquera e um assédio desprezível pode ser muito tênue, já que eles só podem existir mediante abertura e consentimento. Entendo também o desconhecimento completo e a falta de empatia masculina com nosso ultraje e indignação diante de abusos travestidos de elogio. É difícil mesmo compreender uma realidade que não se vive. É custoso encontrar a violação ao corpo de alguém quando não se sofre, desde quase a infância, comentários sobre “peitinhos crescendo”, sinal de que a filha “vai dar trabalho ao pai”. Quando se está do outro lado dos pesos e medidas, há um caminho muito longo em perceber a violência que é julgar alguém pelo corpo e a aparência: gorda = preguiçosa, decote = piranha, saia comprida = puritana, magra = não tem onde pegar, forte = mulher-homem, e uma infinidade de chavões que matam a gente por dentro – e literalmente – pouco a pouco.
Uma dica que creio ser infalível é pensar que qualquer mulher é filha de alguém. Ou mãe, irmã, esposa, amiga, tia, prima, o que for. É alguém querida e especial para outra pessoa. Um homem, inclusive. Um homem como você que lê agora. Então meu conselho é tão simples quanto eficaz: toda vez em que você pensar em “elogiar” uma mulher na rua, no bar ou no trabalho; sempre que os dedos coçarem para mandar um “gostosinha” por e-mail, pense que a destinatária poderia ser a sua filha. Ou sua mãe, esposa, irmã, namorada ou qualquer mulher importante em sua vida. Pode perguntar a elas: certamente já foi. Pense em você presenciando o “elogio” feito a ela. Como reagiria? Se imaginar que a situação causou – no mínimo – desconforto, bem-vindo ao que vivemos todos os dias.
Antes que eu me esqueça, reagir a assédio não é coisa, como dizem, de mal-amada. É atitude de mulher mui amada. Sobretudo por si própria