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Pra não dizer que não falei das flores

julia coluna
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Chega a época em que o debate raso sobre dar ou não flores no Dia Internacional da Mulher ganha as redes sociais. Na rinha, há homens ofendidíssimos, como se dar um buquê ou uma rosa ou uma mulher fosse uma missão moral de vida que lhe é negada. De outro lado, mulheres que não veem problema no ato, dizendo que adoram flores e que o cotidiano já é duro demais, então por que não aceitar pequenas e esporádicas gentilezas da vida? Há, ainda, as que dizem que essa paparicação florida é um ato de condescendência, assim como chavões cafonérrimos de que “enfeitamos o ambiente”, “trazemos o toque feminino”- seja lá o que ele for e frases feitas e vazias desta estirpe.

O feminismo bateu na minha janela quando eu já era adulta, e, de forma natural – e nem por isso menos egoísta -, floresceu (trocadilho intencional) a partir de opressões que eu percebia que sofria: o assédio na rua, a cobrança por ser mãe, o questionamento do que digo e faço pelo simples fato de ser mulher, a vigilância sobre meu corpo, relacionamentos que tentaram tolher minha liberdade e minha autoestima (e, por um tempo, conseguiram), e várias outras questões que me afetavam diretamente na minha vida branca, hétero, cis e de classe média.  E tudo bem, esta sou eu, esta é minha vida, são estes os problemas que me afetam.

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Mas cada vez mais tenho pensado no quão feministas são as mulheres que nunca precisaram se rotular como tal para estarem em constante estado de luta, para existirem como são. Mulheres trans de quem a identidade de mulher é roubada diariamente em olhares debochados, atos de preconceito, violência e, sobretudo no país em que mais as mata, feminicídio.  Isso sem mencionar o mercado de trabalho, que lhes vira as costas e fecha as portas, o abandono familiar, a solidão, a depressão.

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Penso também nas mulheres negras. Eu não posso falar sobre o que é sofrer racismo, mas sei como viver em um país tão racista estruturalmente me privilegia por ser branca. Nunca fui seguida em loja quando estava “namorando” vitrines e araras. Nunca ouvi ou me foi sugerido “branca deve ser boa de cama”. Meu corpo nunca foi julgado como sendo “para o sexo” ou “para o trabalho”. Nunca me perguntaram, ao tocarem minha campainha, se minha patroa estava. Nunca tive que aconselhar o filho – que não tenho- a jamais correr na rua e sempre, impreterivelmente, andar com seus documentos. E estou me atendo somente aos clichês.

Eu poderia escrever um livro sobre as opressões que sofro e reeditar a Barsa (jovens, procurem no Google) descobrindo e relatando as que não sofro. Há um longuíssimo caminho a se percorrer – e sabe-se lá se há linha de chegada – para que meu livro e a Barsa completa a que me referi sejam discutidas verdadeiramente, e que se busque soluções para que ser mulher não doa tanto e não seja tão exaustivo. Querer reduzir isso à discussão de “pode ou não pode” no que tange às flores é invisibilizar as lutas históricas – das mais triviais às mais árduas -, e não faz com que menos flores sejam colocadas sobre túmulos de mulheres vítimas de um sistema patriarcal  e misógino diariamente. Nunca foi sobre as flores. Façam delas o que quiserem.

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