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Ave qualquer Maria

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Maria era gente como a gente. Estudante de pedagogia aos 19 anos, tinha seu quarto na pensão de moças da Dona Eduarda Cunha, e se desdobrava entre um estágio remunerado, as aulas da faculdade e alguns bicos que fazia em lojas e restaurantes quando precisava de uma grana extra para uma viagem, uma roupa nova ou um fim de semana de pequenos luxos como restaurante caro e um show bacana.

Aos fins de semana, normalmente ficava na casa do namorado Feliciano, retornando à de Dona Eduarda só na segunda de manhã bem cedinho, quando ele a deixava por lá antes de pegar no batente. Em uma dessas segundas, ao voltar da feira, Dona Eduarda deparou-se com Maria aos prantos à mesa da cozinha.

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– Que foi, brigou com o Feliciano, filha? Ah, nunca fui com a cara dele! Sabia que…
– …ele terminou comigo, não quer mais ver minha cara. Nunca mais.
– Ahhh, mas eu cansei de te falar, mulher não pode se entregar fácil assim. Tem que se dar ao respeito! Senão acontece isso: quando eles se cansam, largam e pegam uma nova.
– Foi nada disso não, ele terminou porque eu tô grávida.
– Que desalmado! Homem é tudo assim, minha filha. Mas é só exigir que ele case, que tudo vai dar certo.
– Eu não quero casar, não, Dona Eduarda! Eu quero é respeito, ainda mais depois disso tudo. Casamento não resolve. Até porque o filho não é dele!
– Nossa, mas então você fez por merecer! Não estranharia até se ele te desse uns tapas. É aquela coisa: não justifica mas explica, né Maria?
– Eu fui estuprada, Dona Eduarda.

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Silêncio à mesa. Maria prosseguiu, entre soluços, com dona Eduarda de olhos arregalados.

– O filho é desse bandido, que me pegou à força, me assaltou e me violentou quando desci do ônibus a duas quadras de casa. Não falei nem com a polícia porque tive medo, e muita vergonha. Fiz os exames para saber se estava tudo bem e hoje descobri que estou grávida desse monstro. Contei chorando pro Feliciano e ele disse que não vai criar filho de mulher rodada. Que vá para o inferno!
– Tenta entender o lado dele… criar filho de outro? Ele é homem, tem o orgulho dele…
– E meu orgulho, Dona Eduarda? E minha dignidade? E meu direito sobre meu corpo? Tá tudo muito errado!- disse quase gritando, entre lágrimas.
– Vai dar tudo certo. Se Deus te deu essa criança, é porque há de ser uma coisa boa.
– Eu não quero esse filho. Tenho medo de morrer em uma clínica clandestina ou de ser presa, mas não vou ter essa criança.
– Mas que absurdo! – bradou Dona Eduarda Cunha – Como você pode ter a coragem de acabar com uma vida? Tem certeza que vai conseguir viver com essa morte nas costas? Como pode dizer não a uma bênção? É uma criança…

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O desfile de argumentos de Dona Eduarda seguiu por aí, destituindo Maria de qualquer decisão sobre seu futuro e seu corpo em nome da vida do rebento que carregava no ventre, com menções a Deus aqui e acolá, fazendo crescer a culpa de uma já abalada Maria. O tempo passou: um dois, três meses, e a futura pedagoga decidiu ser mãe, em parte por peso na consciência, em parte por medo do que a esperava ao tentar interromper a gravidez. Pedro nasceu lindo, um bebezão. A família ajudou e Maria conseguiu se formar, arrumando logo um emprego que não era excelente, mas dava pra pagar um apê alugado – ao lado da pensão de Dona Eduarda- e alguns luxos. Com bolsa de estudos, Pedrão foi crescendo com a melhor educação possível, e vez ou outra ganhava uma roupa ou tênis de marca. Pintou até grana pra um videogame quando Maria recebeu um abono gordo. Mas quando se tornou adolescente, “vez ou outra” passou a ser pouco para Pedro.

Conversando com Josué, traficante do bairro, na padaria da esquina, descobriu que podia descolar uma grana fácil entregando “mercadoria”. Aceitou. Agora roupa de marca era quando dava na telha. Fim de semana era sempre com noitada das boas. O celular era lançamento, daqueles que a galera manda trazer dos States. Quando a mãe questionava de onde tirava dinheiro pra tudo isso, Pedro respondia, sem pestanejar: “Economizei da mesada, mãe.” E Maria se dava por satisfeita, na negação clássica de mães que se tornam surdas para boatos de vizinhas e cegas para o que veem sob seus narizes. Num dia desses em que se acorda com o pé esquerdo, Pedro saiu de casa e conversava mais uma vez com Josué. Um motoqueiro passou de capacete e disparou vários tiros. Mirou em Josué e acertou no menino de Maria que caiu imediatamente, e também na mesma hora foi cercado de curiosos.
Maria chegava do trabalho e quando escutou o nome do filho aproximou-se, jogando-se em desespero sobre o corpo ensanguentado e desfalecido do filho, a quem chamava aos gritos, inetrcalando por agoniantes “Nãos”.
Entre os curiosos, estava Dona Eduarda Cunha, que chegou perto da cena, olhou o cadáver do garoto cuja vida tanto defendeu e disparou, sem qualquer vergonha na cara:
– Já vai tarde! bandido bom é bandido morto!

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