Com o risco de ser repetitiva, reitero: podem espernear o quanto quiserem os defensores “do bom Português”. Nem ao dinheiro, nem ao poder (como se fossem indissociáveis), nem à opressão, a língua não se doma à rigidez de normas, regras, leis. Ou ainda estaríamos nos tratando por “vossa mercê” e vivendo numa cidade em que “Avenida Independência” seria um registro passado, em vez de geolocalização presente e frequente.
“Bicha”, “sapatão”, “vadia”, “preto”, “preta” e tantos outros verbetes continuariam sendo termos que só ecoam na dor, causada por quem vive de diminuir outras existências e se vale do idioma (e do belicismo com os dedos) como arma. O léxico é vivo e cria seus próprios caminhos, desvios e fluxos a partir do único lugar em que de fato existe: na boca do povo.
Dito isso, nem toda transformação ou “ressignificação” é para melhor – busco respaldo na ironia irritada destas aspas, e todas que usarei a seguir. Vira e mexe a gente vê virar moda, fenômeno que culmina na profusão de tatuagens horrorosas, palavras que vão se cercando de contextos tão desprezíveis que assim também se tornam. (Em tempo: tatuagem: faz quem quer, a que quiser, registre-se).
Na longa fila de palavras que minha amargura fez aposentar, “resiliência” ocupa um lugar especial. Entendo a boa-fé de quem tenta imprimir um significado às mazelas da vida e vê no termo a esperança necessária pra chegar ao fim do expediente, do dia, do ano.
Na Física, corpos resilientes apresentam a capacidade de retornar à forma original após terem sido submetidos a uma deformação elástica. No LinkedIn, no Instagram e na vida, tenta-se imprimir em legendas ou em tinta sobre a pele que a palavra remeta à adaptabilidade à má sorte. Mas nem tudo é sorte, boa ou má. Há maus destinos milimetricamente planejados como tal, por gente que certamente lambe os beiços para que se pregue “resiliência”, habeas corpus pra quem arquiteta a desgraça.
Enquanto tiver fuligem no ar que precisamos respirar de máscara, suando em bicas mesmo a quilômetros de um gigante crematório a céu aberto; enquanto contar mortes fizer parte da rotina diária… eu quero ter tudo, menos resiliência.