Desde que aprendi a identificar perigo nas coisas, um espectro passou a rodear minha cabeça hipocondríaca. Vira e mexe ele aparecia, murmurando que aquela dor no lado esquerdo da planta do pé ou na ponta do lóbulo direito da orelha pode ser alguma manifestação rara – ou absolutamente comum – da doença “incurável”, “maldita”, “ingrata”, da que não se pronuncia o nome.
Estava de máscara, um coque alto, cacheado e volumoso enrolado numa bandana e uma roupa preta, mas fresquinha e esvoaçante, quando o médico cravou, sobre as suspeitas do nódulo em meu seio direito: “Deu positivo”. A máscara PFF2, mais indicada para prevenir o contágio e a disseminação da Covid-19, pra mim deixava todo mundo meio com cara de papagaio. E naquela hora era como se o impecável Doutor João fosse um papagaio gigante, repetindo o que na minha cabeça até então era uma sentença: “Deu positivo! Deu positivo! Deu positivo!”.
Câncer de mama. Diagnosticado aos 35 anos. Improvável, raro, e, no mínimo eufemismo possível, inoportuno no Brasil de 2021. Estava maldita pela doença que não se diz o nome? Se eu parasse de dizer “câncer” o nódulo que crescia sob meu mamilo magicamente deixaria de crescer?
Temos uma imagem extremamente distorcida e cercada de tabus quando se trata de câncer. Personagens de filmes, séries, livros e o escambau que inevitavelmente morrem, jatos de vômito e outros efeitos incapacitantes da quimioterapia e, claro, a Carolina Dieckmann chorando enquanto perde os cabelos ao som de “Love by Grace”. Isso tudo faz a gente crer que se trata de uma doença só, e que escapar da morte quando temos um diagnóstico dela é impossível ou um milagre intangível “só” pela medicina.
Mas veja você nesse #outubrorosa que acabou de romper: só o câncer de mama tem diversas variantes, com diferentes indicações de tratamento. Com diagnóstico precoce, como o meu, as chances de cura são muito maiores, chegando a 95%. Ainda assim, o de mama é o que mais mata mulheres no Brasil, correspondendo a mais de 16% dos óbitos por câncer nelas. Importante dizer que não só mulheres têm câncer de mama, mas tenho uma pergunta mais urgente pra fazer no momento. Quantas mortes poderiam ter sido evitadas com um diagnóstico precoce? Quantas ainda podem se a gente falar mais sobre a doença e não só temê-la? Seu exames tão em dia? Os meus – ironia- estavam! “Depois da pandemia eu faço um check-up”. Vai dar tempo? Pra mim, não deu. Não dá pra esperar.
Não falar sobre o câncer ajuda a mantê-lo no tabu de “aquela doença”. E ao contrário do objetivo, o silêncio não afasta magicamente a ameaça, só a torna mais perigosa. Afinal, se não se fala sobre algo, é como se aquilo não existisse. E quem se previne contra um mal inexistente?
Eu não estou curada. Ainda. Estou acabando os ciclos das temidas quimioterapias, uma fase importante do tratamento, que segue com cirurgia e uma etapa ainda a ser definida. Em seis meses desde o diagnóstico já perdi cabelo, já levei mais agulhadas no corpo do que jamais antes, já fui internada, já chorei, já ri e coleciono novas cicatrizes e marcas no corpo. Não é porque tem cura que é fácil ou indolor. Não é. Mas precisamos de outros referenciais sobre câncer que não sejam pacientes que morrem ou que se curam e ganham um Nobel.
Como eu não vou ganhar um Nobel, quis deixar esse punhado de palavras sobre pessoas como eu: que não são guerreiras por enfrentar um câncer, mas fizeram o que era preciso para ficarem vivas – não sem dor, sofrimento e medo, mas apesar deles. E acreditando na ciência, na brilhante equipe multidisciplinar que cuida do meu tratamento e no amor infalível de quem me cerca. E, principalmente, vendo todos os dias a importância do diagnóstico precoce.
A fitinha característica no peito, a foto com todo mundo de rosa (ou azul, no mês que vem) e a hashtag #outubrorosa valem absolutamente nada sem autoexame, check-up médico e a prioridade com a própria saúde. Oportunamente, lembro que todo o diagnóstico e o tratamento podem ser feitos no SUS, defendam SUS!
E se ao final deste texto ao menos uma pessoa decidir marcar uma consulta e/ou fazer exames preventivos, estamos um passo mais longe do estereótipo de “aquela doença” e um mais perto da cura de tipos de câncer que podem ser curados.