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‘Fuma eu!’

julia coluna
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Esses dias pensei muito na minha infância registrada em fitas VHS, como típica criança branca de classe média dos anos 1980-1990. Não tínhamos filmadora lá em casa, mas meu tio sempre emprestava a sua – ou gravava ele mesmo – para que não passassem batidas as festinhas de Dia das Mães, os arraiás, os aniversários, os festivais de balé e outros tantos fragmentos de nossas vidas que a assistíamos depois, repetidas vezes.

Boa parte da minha vida de criança foi capturada pelas lentes daquela Panasonic imensa. Algumas cenas tornaram-se clássicos de família e são evocadas até hoje como espécies de memes da era pré-memética. 

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Uma delas traz minha microversão, e a prova irrefutável do meu precoce encanto pelas câmeras. Eu, com uns dois anos de idade, corria na direção da grande caixa de filmar e dizia para o meu primeiríssimo cinegrafista, sem sequer saber pronunciar ‘filma’: “Dindo, ‘fuma’ eu! ‘Fuma’ eu!”.  Mudaram os dispositivos, as lentes caseiras encolheram de tamanho, mas até hoje, é só reunir o povo lá de casa e alguém anunciar que está gravando para começar o coro: “‘Fuma’ eu, ‘fuma’ eu!”.

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Gosto de saber que essas memórias estão registradas em fitas que talvez sejam convertidas para uma tecnologia mais moderna algum dia (se é que as fitas ainda existem – espero que sim). Mas amo o fato de que, para além do que foi impresso magneticamente nas caixas de plástico que habitavam nossos videocassetes, as lembranças vivas até hoje em churrascos de família contam um tantinho da nossa história que nenhum avanço técnico pode tornar obsoleto ou impossível de ser lido.

Sempre que ouço a máxima de que “a história não perdoará” fulano ou beltrano, acho um pouco de graça. Talvez o famoso riso de nervoso, de lamúria, “amarelo, sei lá, desespero” ou qualquer outro que o valha. Não vivemos em um país em que a História (note-se a maiúscula) cobra os algozes do povo – não que haja esta nação propriamente. Desde Cabral, a “narrativa oficial” parece sempre um caso crítico de Síndrome de Estocolmo, e assim seguimos até hoje, fazendo bustos e nomeando ruas pela patente e nome de ditadores.

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Quando tentarem – e tentarão, já tentam! – tornar heróis os algozes desses tempos horríveis que a gente vive, muitas vozes serão silenciadas, muitos registros apagados. Como se o horror nunca tivesse existido. Mas tenho a certeza tranquila e vigilante de que seguiremos repetindo nossas lembranças entre os nossos, como no “‘Fuma’ eu!” tão emblemático de minhas reuniões familiares. 

Além disso, a memória tem um poder gigante de vir à tona e mudar a História, a do “H”. Ainda que demore muito. Anos. Gerações. No fim das contas, é como as fitas VHS: sempre aparece alguém pra converter.

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